segunda-feira, 24 de agosto de 2015

PAIXÃO PELOS TRENS



Gostar de anacronismos é uma de minhas tendências. Gosto, por exemplo, dos trens, e o curioso é que nunca viajei de trem. Falo disso nesta resenha que escrevi sobre um belo livro de Fernando Fiorese, "Um dia, o trem", poesia lançada pela Nankin Editorial/Funalfa/Juiz de Fora.

http://www.verdestrigos.org/wordpress/index.php/2010/07/o-luto-e-a-desmesura-de-um-trem-mineiro-na-poesia-de-fiorese-por-chico-lopes/

terça-feira, 4 de agosto de 2015

INVERNO DE SANGUE EM VENEZA E AMANTES ETERNAMENTE MELANCÓLICOS















Por força da circunstância de só haver um cinema em minha cidade, especializado em block-busters (e ainda por cima, horror, dublados), fico apenas nos DVDs, confiando em cópias que amigos me mandam ou, com muita sorte, encontrando alguma coisa digna nas locadoras da cidade, que são pequenas e restritas ao que o grande público quer consumir: ação violenta, terror vagabundo, romances idiotas, na maior parte do tempo. Dizer que isso é decadência do cinema comercial é um pouco besta. O cinema sempre foi uma arte industrial, com pouca coisa realmente artística pelo meio de aluviões de lixo. A gente sempre sai por aí em caça de filmes predestinado inevitavelmente a riscos. As apostas no escuro são constantes, as decepções abundantes, mas os milagres de beleza e arte, escassos, são ainda assim compensadores.
Eu conhecia “Inverno de sangue em Veneza” (“Don´t look now”) de fama, filme de terror tido como especial, verdadeiramente “cult”, de 1973, dirigido pelo inglês Nicolas Roeg. Vi o DVD todo, filme e extras. É um lançamento bem cuidado da Versátil e pode ter certeza de que você não verá este filme com facilidade nas programações, nem mesmo as de tevê a cabo. Parece que os programadores o acham “datado” ou ainda não o conhecem, ou não gostam do gênero.  A minha sorte foi ter um amigo muito atencioso, Marcelo Adifa, poeta de Sorocaba, que disse que ia me conseguir uma cópia e a mandou, e ela felizmente me chegou, mesmo com mil problemas advindos de encomenda pela internet e demoras irritantes no correio.
É um filme de terror? Duvidoso. Se conceituarmos o terror nos parâmetros do que anda fazendo sucesso nos cinemas e locadoras, “Inverno de sangue em Veneza” é um filme de poucos sustos, embora seja de um tremendo poder de sugestão para espectadores mais sensíveis. Não sai nenhum monstro melequento do armário, nenhum demônio aparece com olhos fosforecentes no escuro, não há adolescentes cretinos se metendo em cabanas e abrindo livros ocultistas proibidos nem bonecas assassinas etc. É a história de um casal cujo descompasso maior está entre a sensibilidade (um tanto crédula) da mulher e o racionalismo seco (e estúpido) do marido. Eles são Julie Christie e Donald Sutherland e sem dúvida aquele figurino, os penteados e outros detalhes dão um look infalível de anos 70 à produção. Mas se alguém for fútil o suficiente para achar isso ruim, nem precisa continuar lendo o que escrevo aqui.
Ele é um arquiteto, ela uma dona de casa, e eles têm um casal de filhos. No início, a menina, passeando no campo junto a casa onde moram, deixa por acidente cair num laguinho a bola com que brincava. E morre afogada. Esse início do filme é com justiça celebrado pela habilidade com que Roeg joga todos os elementos da trama e da narrativa em poucos minutos, na nossa cara. É, na verdade, um exercício impecável de premonição e angústia. Porque o racionalista obstinado que é Sutherland, na verdade, é obtuso o bastante, durão o bastante para não perceber que é dotado de poderes paranormais, e esta é sua tragédia. Ele percebeu que algo acontecia e tentou salvar a filha. O grito de desespero que solta dentro da água, com a menina (em sua capa vermelha de chuva) no colo, é mais terrível que qualquer susto desses que se vê por aí. Sutherland é um grande ator (infelizmente, não sempre). Depois, tudo se desloca (em corte rápido e brilhante) para Veneza, onde Sutherland vai restaurar uma igreja corroída para um bispo (o ator Massimo Girotti). E, num restaurante, sua mulher é olhada com insistência por duas inglesas, irmãs envelhecidas, que fazem turismo na cidade. Uma delas é médium, acaba se aproximando de Christie e diz que viu uma garota de capa vermelha ao lado dela, dizendo (aquela conversa de “tudo bem do lado de lá” em que só acreditam os que desejam desesperadamente acreditar) que a sua filha morta está feliz. Julie Christie desmaia, de tão emocionada. E passa a acreditar na mediunidade da mulher. O que irrita Sutherland.
Mais não contarei, não sou dado a “spoilers”, mas o que mais me impressionou nesse filme, não muito conhecido pelo grande público, e nem tampouco uma obra-prima (como diz Roger Ebert na contracapa do DVD) é que ele foi muito visto por outros cineastas, com toda certeza. É óbvio que Spielberg tirou sua garota de vermelho, em contraste com o preto e branco de “A lista de Schindler”, da criação de Roeg. David Lynch e Brian de Palma andaram bebendo da fonte “roeguiana” também. Você, que já viu Lynch, verá que aquele plano em que a médium cega passa em close, olhando sem olhar, meio em transe, para Sutherland, está naquelas estranhas videntes de “Coração selvagem” e “Empireland” e talvez em outras partes da obra lynchiana.  Sem dúvida os anõezinhos de Lynch também têm a ver com esse filme. Roeg, por sua vez, bebeu em Hitchcock, daquele plano de um filme inglês (não lembro qual) em que uma mulher solta um grito imediatamente abafado e ampliado pelo som de um apito de trem. No caso, Roeg corta da casa de campo do casal diretamente para Veneza colando o grito de Sutherland ao som de uma broca de restauro da craquelenta igreja veneziana. Lembrar a importância de uma broca para De Palma.
Essa Veneza “sangrenta” me pareceu mais verossímil que aquela, toda linda, de tantos outros filmes consagrados, como “Morte em Veneza” e “Quando o coração floresce”. É uma cidade escura, cheia de labirintos, em que Sutherland vê, e perde de vista, continuamente, a filha com sua capa vermelha – a menina vai trafegando por aqueles desvios, passagens de gôndolas, ruelas, portas e janelas sombrias e ele a persegue como pode, até se deparar com a verdade. E uma imagem soberba nos mostra Julie Christie, com as duas irmãs, avançando numa gôndola, as três de luto.
O filme, na verdade, é o angustiante estudo de um casal que perdeu um elo fundamental – a filha – e se debate entre o mundo real e o pesadelo. Uma película muito fina recobre a fronteira entre vida e morte, entre crer e descrer no Destino e seus sinais, na produção. Ela mereceria ser muito mais conhecida.

TILDA E TOM: UM CASAL DE VAMPIROS PARA O NOSSO TEMPO


Bem recente, ainda saindo dos cinemas para o DVD, é “Amantes eternos” (“Only lovers left alive”), do consagrado (mas muito polêmico) Jim Jarmusch. Não pude ver num cinema em S.Paulo e deve ter tido público pequeno, para já circular por aí em DVD. O filme foi ora incensado ora criticado (acharam-no, alguns críticos, superficial e dispersivo) e eu queria fazer minha prova de espectador, porque admiro Jarmusch, e com uma atriz como Tilda Swinton achava que não poderia ser tão falho.
Não é mesmo. Jarmusch acertou, e mesmo eu tendo gostado de um filme seu como “Flores partidas”, considerando que seu período áureo foi mesmo o de “Daunbailó” e “Dead man”, eu já não acreditava muito nele, talvez por não ser um nome muito citado em revistas e sites de cinema. Ele parece ter criado seu próprio universo fílmico com menos fama e polêmica que diretores como Lynch, talvez seja mais tranquilo ou não se interesse muito por publicidade.
O filme é um fiapo de história, e os nomes dos personagens, Adam e Eve, Watson, Marlowe, tão obviamente paródicos, que há uma tendência a não se levar nada daquilo a sério. E, no entanto, mesmo tendo o olhar blasé e gozador (humor negro, bem entendido) de Jarmusch, o filme nos pega é pelo lado melancólico, com seu grande amor pela eternidade de um casal elitista de vampiros que não quer consumir sangue humano (os humanos, para ele, são os “zumbis”) contaminado e se abastece ora clandestinamente em hospitais ou em fornecedores especiais como o Marlowe (o grande John Hurt) em Tanger. São uns “esnobes intransigentes”, como diz a chata da irmã de Eva, que vai passar uma temporada com o casal e drena todo o sangue de um amigo de Adam, que lhe fornece itens especiais. É posta na rua por Eva. Com toda razão.
Quando o filme começa, o que Adam quer é uma determinada bala para revólver porque tem um projeto de suicídio. Eva, que está em Tanger, viaja para Detroit, onde ele mora, para dissuadi-lo. Eles se amam há uma eternidade. E a gente não sente vontade de descrer disso. Os atores (ele é Tom Hiddleston, excelente) dão uma credibilidade e uma empatia profunda a esse casal, que para muita gente é uma nova tradução de Catherine Deneuve e David Bowie do “cult” “Fome de viver”. Peço desculpas, mas acho Tilda e Tom superiores aos dois manequins chamados Deneuve e Bowie.
Mas “Amantes eternos” tem um “pathos” de anos 1980, mesmo assim. Na época, o cinema estava investindo em estéticas “dark” que parecem agora coisa do passado, mas conservam sua pungência, agora com ares anacrônicos, num mundo corroído pelo mercantilismo cultural mais besta possível. Adam mora numa Detroit fantasmagórica, as tomadas daquelas ruas vazias de madrugada, cercadas por grandes edifícios lívidos pelos amarelos de luzes urbanas, são extraordinárias. Tudo parece amplo e vazio demais. E o filme tem outro grande acerto: nada de cenas de vampirismo explícito, só mesmo quando é necessário (e genial). Eva, por sua vez, tinha que morar em Tanger, pátria de americanos exilados e ultracultuados como William Burroughs e Paul Bowles.
Adam e Eve, “esnobes intransigentes”, são o próprio romantismo de Jarmusch. Encarnam bem o ideal de um par elegante, elitista, “cool”, que vive para o amor eterno, a literatura (Eva não sai de Tanger sem encher a mala de livros), que cita Scott Fitzgerald, Shakespeare etc a todo momento. Ao pedir passaportes falsos, inclusive, ela dá seu nome como “Daisy Buchanan” e o dele como “Stephen Dedalus”. Naturalmente, isso restringe o filme a um apelo “cult” a que a juventude atual não responde mais. E isso torna a solidão da dupla ainda mais trágica. E há também a costumeira letargia com que Jarmusch trata as cenas, em que longas conversas podem se prolongar contando com que o charme das falas e dos atores supra tudo, o que é maldição para o cinema fútil e veloz de hoje em dia. Jarmusch não fez concessões. Fez o filme que quis. Um belo filme.
Cinema, assim, sobrevive nas condições de coisa maldita – cinefilia, literatura, nenhuma preocupação com ritmos dinâmicos, de “ação”, nada de astros do momento, nada de apelos para grandes efeitos especiais, nenhuma história destinada a ocupar 40% das poucas salas de cinema do país e sugar vorazmente a atenção dos adolescentes febris à porta, engolindo aquela intragável pipoca amanteigada, privando-os de conhecer o verdadeiro cinema, arriscado e poético.

Não se trata de uma obra-prima, “Ama a.ntes eternos”. Mas da resistência de um tipo de cinema que aprecio muito. E que sempre irei ver. Mesmo que ao lado de uns dez gatos pingados na sala escura.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

TRIO: UMA HISTÓRIA DE AMOR E FANTASMAS









TRIO




Para Ordacy Pereira,“Cy”, in memoriam 
Para Cido Madrugada)





Desde primeiro, eu me disse – era preciso ter Arlete, estar com ela todos os dias, perto do que fazia a toda hora, ela ali, no caixa do bar-padaria-restaurante tão linda, tão exposta a todos, solícita demais, com um sorriso que fazia os afoitos inventarem o que comprar, maço de cigarro, bebida, um pão, algo que lhes permitisse vê-la fazendo o troco, ouvi-la agradecendo, um mínimo de sua atenção, tão séria no que fazia, nenhuma esperança aos descaradamente interessados.

“Não é pro teu bico, Espanhol” – Brito me dissera, e eu me curvava: ele era mais bonito, fora bem sucedido com outras, parecia ter o que ensinar e, se a experiência não fosse tão comprovadamente maior, era ao menos mais desinibido, mais convicto de certos passos, certas técnicas. “Olha, não se pode fazer isso que você está fazendo...” “Isso o quê?” “Olhar desse jeito. Você está deslumbrado, com cara de besta. Homem nenhum deve mostrar interesse assim tão claro, te garanto. Mulher gosta de um certo desprezo...”

Eu me continha, olhava para os pães, vinhos, cervejas, o balcão, onde dois ou três conversavam, e um deles a olhava, com toda a certeza. Era sempre assim: esperavam que ela lhes levasse a bebida e retinham-na com conversinhas o quanto pudessem; muito educada, ela respondia a tudo; a cada momento, eu ganhava um novo ódio, um rival de cuja rapacidade (ela não notava a grossura gritante, não adivinhava o que se cochichava sobre suas formas?) eu tinha que afastá-la. “Relaxa, Espanhol. Ela está escolhendo, ela pode escolher. É sempre assim, sempre sabem o que querem e nós, na fila, estamos é nos expondo ao insondável...”- retornava Brito, devagar em ir liquidando um copo alto de cachaça das mais fortes.





Como certas manhãs de cheiro de terra, palha de arroz e café recém-torrado, Arlete, ela, ela, ela me trazia de volta o imperativo de certos sonhos, certas possibilidades de Paraíso entrevistas em menino, o quê? Milagre, ela, a que passava, a que coleava por entre as mesas, um guaraná aqui, um misto quente ali, alguém a quem dar um sorriso, um troco a buscar no caixa, uma pergunta a responder, ela, a que tinha olhos puxadinhos, a que devia trombar no ectoplasma dos desejos todos à solta, esbarrar na unanimidade aérea desses olhos, dessas ereções, desses suspiros, pequena, uma só, para tantos, os tormentos no ar, o peso concreto do impalpável, a horda canalha paralisada em encanto. Por que tinha que ser assim tão ela, tão desejável, metida em vestidos amarelos e azuis-claros, brancos, cores que contrastavam a matar com o moreno da pele, coisa mais absurdamente certa, dádiva, desvario? Ninguém saberia a quem em particular aqueles olhos podiam se dirigir, já se sabia que um fazendeiro tinha sido bem claro e ela o repelira daquele seu modo que não convencia como rejeição, doce demais para apaziguar certos tipos e apetites – porque ele continuava a aparecer e, mãos nos bolsos, perdia horas ali sem outra justificativa que não uma espera de sinais, numa assiduidade que ingenuamente imaginava passar despercebida. Eu precisava vencê-lo, vencer aquela obstinação que poderia redundar em algum ganho repentino, vencer o “não é pro teu bico, Espanhol” proferido por Brito. Mas, na verdade, era entre todos quem ela parecia menos considerar, se é que considerava alguém.



Nada além de um bar um pouco mais pretensioso, embora em ponto central, e Brito, que tinha suas corretagens na praça próxima, dias perdidos em conversas com outros biscateiros naqueles bancos, os negócios escassos, começava, por companhia para lá de assídua, a me pesar como acusação de que a vida passava e não nos arrumávamos, dupla de malogrados, solteirões, trintões sem rumo, “cara, vamos morrer aqui, velhos, sofrendo de incontinência urinária, vendo essa mesma praça, essa indiferença, sem grana, sentindo esse calor maldito...” Ele ria: “Até ontem você não estava se tocando, Espanhol...Que há? Tem que ter alguma coisa pra oferecer à moça, é isso? Quer se casar, babaca? Ela sabe disso? Ela tá querendo isso?”

Ele tivera uma namorada longos anos; lamentava que, amando-a, ela lhe tivesse imposto casar-se ou ela iria embora, moraria na capital, procuraria um homem certo, sólido, bem empregado – “...me dói que ela não quisesse o essencial. Me queria era escravo, fazendo filho, pagando conta de supermercado, eu, Brito! Tem graça! Elas são assim, menos românticas que a gente, não se iluda...Acabamos, e eu sei que ela mora num apartamento de nadinha, solitária. É durona, me botou contra a parede, ultimato. Bom, mas eu podia ir pra lá, tentar...” “Por que não escreve pra ela, por que não marcam um reencontro, conversam, se ajeitam?” Feito, mas era eu quem tinha que escrever, atrapalhava-se com as palavras, quem mais que eu podia dar conta disso? Ditou o que sentia, procurei as melhores palavras, urdi frases aliciadoras, arranquei-lhe assovios com a carta concluída, “...rapaz, que perito! Com essa habilidade, até um macho você acaba levando pra cama...”

Mas ela não respondera, nunca. E a sua vida seguia sem arrependimento, sem remédio. Uma persistente Júlia, quatro anos mais velha que ele, vinha de cidade vizinha para vê-lo de vez em quando; apontava na esquina, esperava, uma mala posta no chão, perto do ponto de táxi, em frente ao bar, e ria-se dele ali dentro, fazia-se em coro um “vai, vai, vai, filho da puta”, ele era empurrado a cumprir o dever, sumia com a figura – baixinha, tímida – para os centros da praça, nervoso, incapaz de olhar para trás e constatar a zombaria. Precisava dela, do que ela lhe dava, o que incluía algum dinheiro para pagar as dívidas de bar indefinidamente adiadas, mas o servilismo lhe era tão necessário quanto desprezível: “Tem umas que você não pode comer. Ficam que nem essa aí – faz de tudo, tudo, esperando que eu case. São assim, boas, coitadas, sentimentais, mas calculistas, doidas por marido, seja que merda de homem for. E a gente, que só precisa de alpiste pro passarinho, tem que pagar caro. O prazer não basta pra elas. A gente tem que pagar caro. Idiotas. Umas idiotas, todas...” E bebia mais. E, dia após dia, nada lhe parecia tão atraente, necessário, vivo e reparador quanto um copo.

O que podia Arlete? Tudo, mas eu, ignorado, só tive coragem de me aproximar do caixa, em que ela parecia ter vontade de desabar, sonolenta, numa tarde em que o céu se fechava e eu teria quatro quarteirões para me encharcar com certeza a partir do bar; perguntei se não teria um guarda-chuva. Sorriu apagado, tinha uma sombrinha, eu aceitaria? Sim, sim. Estampada, umas quantas flores, nenhuma descrição, todas as cores, de lá do balcão não faltou homem apontando e rindo. Pouco me importava, era uma conquista: eu podia, no mínimo, voltar para devolvê-la, agradecê-la, ouvir o pipilo “de nada” daquela voz tão frágil do outro lado do caixa, maravilhar-me.

Brito dividia-se entre zombaria e pena, no meu caso. Por que eu não me esmerava numa daquelas cartas? Mas, com um desejo verdadeiro, talvez a capacidade para a arte me ficasse menor, eu sentia. Engendrava-a com um vagar inconvicto, nenhuma palavra servia, ralo do poder frente ao espesso do sentir, quando, quieto com refrigerante, caneta e caderno numa mesa de fundos, no refeitório, ela se aproximou, sentou-se e falou comigo.




- Ela me quer! Me quer! Fui com ela...

- Não brinca, Espanhol! O negócio...Como é que isso foi?

- Me disse que tem me notado, que me acha diferente, mais sensível...

- Ah, é o começo. E você, o que fez?

- Bom nada, Beijos, beijos, beijos. Ah, tão linda, linda! Ali, na porta da farmácia Doze. Tava escuro. Sabe o que disse? Que tem sonhado comigo. Que não ia ter sossego se não me dissesse isso. Mas me achava tímido. Pode?

Brito ria, pensava em coisas que não me dizia. Bem vestido naquela noite, com um perfume que era quase certo que Júlia lhe tivesse dado, uma camisa azul-claro que lhe caía admiravelmente bem, outro dos presentes dela, que o enfeitava, segundo ele, para o suplício, como se ele não soubesse, e ria, ria. Senti que era ele o par adequado para Arlete, que havia ali como que uma afinidade, talvez os cabelos pretos, talvez essa morenice quente, talvez a idéia inevitável de mérito que toda beleza carrega, e ambos, que merecedores! Mas ele nunca dissera que achava Arlete particularmente bonita, notava-a e calava-se, um tanto talvez pelo dever camarada de deixar-me território livre, o que no seu caso envolvia uma torcida feroz e silenciosa para que eu levasse um fora e ele pudesse rir mais ainda. Não era para meu bico? Meu maior prazer era que ele tivesse se enganado tão completamente. Mas manteve-se quieto, considerando. 

Anos com a pior das realidades: nenhum dos dois tinha carro, morando em casas das famílias, dois duros, não éramos carne masculina apreciável – como ir para os motéis, como para debandar para os lados escuros, para as estradinhas de terra afundadas em bambuzais e eucaliptos? Algumas coisas ali mesmo, na rua, quando se pegava as “fim de noite”, que estavam à mão, que não se incomodavam de irem para um canto de rua bem distante, para um barranco, sob uma árvore, de se fundirem a um escuro de falta de energia providencial, ficarem de quatro, sujando-se, pinicando-se na grama, num terreno baldio, nenhuma delas presa digna de exibição, ao contrário: mal se falava disso depois, e tinha que se esconder o quanto de repulsivo se levava seriamente em consideração, na falta do melhor, mesmo do mediano, e os dois, ainda metidos, idealizando.

Brito tinha, por uns tempos, uma casa saída de seus negócios nunca muito claros, periférica, pequena, com um comprido terreno em declive, dando para um córrego sujo; eu continuava sem nada, minha casa o menos aconselhável dos abrigos para uma namorada, Arlete, nada além da casa de uma prima, as duas moradoras recentes do lugar, nenhum possibilidade de indulgência da outra, católica demais, para a entrada de um homem tarde da noite. Ele me aparecia também com um Fusca que já fora de um vermelho vagamente cereja, emprestado de alguém que lhe devia por outros negócios, dirigida bem, e tudo pareceu, de repente, imensamente facilitado. – Vamos parecer uns filhos de papai entediados, agora – ria.

A chave. Ele a pôs na minha mão, apertando-a com força e alisando a palma, rindo, como se procurasse sentir um molhado de nervoso de que troçar. Demorou a tirá-la até que eu, agradecido, saí para apanhar Arlete na corrida contra as dez da noite, que ela definira para fechar o bar. Tínhamos um quarto, um quarto! Era o luxo a que ele se dava, agora – uma boa cama, lençóis cheirosos, nenhum vizinho muito próximo para ficar atento a entradas e saídas de mulheres, luz elétrica, geladeira, banheiro. Ele me dissera que podia usar o que quisesse – as cuecas, toalhas, calças, o que fosse, que Júlia lhe dava, ainda algumas camisas imaculadas, no guarda-roupa. Joguei-me na cama, onde ela me esperava. Supunha ali resquícios do quente de Brito com Júlia, o cheiro de algo entre loção de barba, roupa bem lavada, talco e noite, noite, noite, o que isso tem de protetor, de impossível, de ilimitado. Não muito longe, pelo exterior da janela, a vista de uma lua em foice e uma imensa mangueira cheia de frutas maduras que, de vez em quando, uma que outra, caíam sobre folhas com um ruído regular que pontuava a nossa calma. Fui até a janela. Um passarinho indefinível cantava nela ou em outra das árvores escuras. Arlete levantou-se e encostou-se em mim, atenta: “Que coisa! Nunca tinha ouvido esse passarinho cantar assim, tão tarde da noite...” “Quem sabe eles não sonham também?”





Queria contar-lhe o que acontecera, urgente – porque era como a primeira vez. Valiam para algo além do alívio aquelas coisas nas ruas, nos pastos? Tinha vergonha, mas, mãos nos bolsos, o cigarro, o peito estourando, era preciso encontrá-lo, a devolução da chave implicaria num relatório, queria contar, contar. Tudo bem, tudo bem, ria das descrições, dos entusiasmos, da atenção para lua, frutas e pássaros, do chamá-la à janela, “meu Deus, que palhaço, que piegas! Você não me parecia assim tão besta, Espanhol.” Não lhe contei que me obstinara em não ficar de todo nu, em conservar ao menos as meias, e que ela as tirara à força. Na verdade, nada de submissões: em pé, nua, ela me deixava assustado com a quantidade de pelos, com o ereto do corpo pronto a receber outro, beleza crua, todo um pedido, uma espera, um desafio; divertira-se com minhas dificuldades e inibições, só ficara séria quando se dera conta da gravidade da minha adoração, dos rogos para que me ensinasse, guiasse. Para nada me valia a experiência de cavalo errático, com ela era coisa bem outra. “Gosto de poder te ensinar...”, sussurrava. “Esses tipos muito seguros de si...Que horror! Já levei tapas, por reclamar...” A vontade doida de passear depois que ela já dormia, a prima tranqüilizada com a desculpa de que estaria numa cidade próxima. A madrugada, a cidade vazia toda para mim, pedido de um cigarro a um guarda-noturno, o doce da cumplicidade com o clandestino da noite, o ar todo limpo, a totalidade de estrelas, eu.

Brito apanhou a chave de volta novamente retendo a minha mão, como se quisesse dizer bem mais do que lhe podia ocorrer ali, no bar. “Ela não apareceu ainda”, apontou o caixa, rindo. “Está descansando, na certa... Que noite, hem? Você me saiu um grande aprendiz, Espanhol...”


Mas, não o vi mais por um certo tempo. Não era natural que sumisse por duas a três semanas, víamo-nos diariamente, no bar, sempre por volta de uma da tarde, ele com a cara de quem acabara de sair da cama para a rua, cabelo respingando água, de recém-penteado, uma cerveja para abrir, para começar o dia de corretagens. Ela notava minha inquietação, a falta, a desorientação, a insipidez de minhas falas, meus olhos à procura da figura de Brito enquanto as mãos ficavam nas suas, na praça. “Ele vai aparecer. Questão de tempo, bem...” – dizia. Até porque precisávamos voltar ao quarto, a rua, os cantos de esquinas, os trajetos expostos eram um suplício – “aqui, aqui, pega um pouco, ninguém vai notar”, os rins que me doíam, ódios absolutos e ineptos contra todos os impedimentos, primas, mães, um mundo empenhado em nos dar esconderijo. Numa noite fora preciso fazer na varanda de sua casa, nenhum gemido mais alto para não levantar suspeitas da prima lá dentro, sozinha, com a televisão ligada. Ela odiava a minha pressa, mas, como reclamar? condescendia.

Quando Brito voltou, parecia mais magro, reclamava que o carro teria que ser devolvido, entregando-me a chave da casa um pouco relutante e agastado. E Arlete mudava: triste, de pouca conversa, não queria essa cidade, não fazia sentido que estivesse ali. Cada vez falava menos, e me ocorria que eu sabia pouco sobre ela, que estava mais maravilhado comigo como homem apaixonado que interessado pela vida real por trás do seu encanto. 

Na noite da comemoração pela volta da chave, um sobressalto: a porta que se abria com um rangido implacável. “Não se incomodem aí...Sou eu!”, Brito gritou no escuro. E não mais o ouvimos. Pelo fim da noite, alguns ruídos na casa, e pensei ouvir tosses, vozes no corredor para o banheiro; ela voltava, correndo, um pedaço de cobertor velho sobre a camisola, e enfiava-se sob os lençóis, friorenta. Depois, noite após noite sem querer me dizer nada, ânsia de ficar à janela, interessada em longes. Incomodava-se com os ruídos no quarto ao lado: Brito, que agora era mais presente, e uma noite entrara com uma mulher que não chegamos a saber quem, mas que gritava, ria e gozava de um modo que não seria ignorado por quem passasse na rua. Arlete balançava a cabeça, cansada, resignada, quando eu me despia. Mas eu era eficaz, e achava a minha eficácia uma novidade que não cessava de admirar – sentia muito o meu desejo e pouco a sua infelicidade.

Lá estávamos, menos donos do tempo e das graças da noite, eu com meu cigarro, ela silenciosa. Ultimamente, pagava-me os maços e, de algum modo, a presteza com que tirava dinheiro da bolsa para as minhas despesas parecia parte de seu programa de fatalismo, de tristeza. Revirava-se na cama. “Tenho que te dizer uma coisa. Mas só digo se me prometer que não vai fazer nada de errado. Olha, bem, o Brito...”

Saí correndo para o outro quarto, ele não estava; de cueca, andava lá fora, ungido de lua, com um de seus charros caprichosamente feitos. Viu-me e, rápido, desviou-se do soco. “Isso é coisa que se faça, desgraçado? Cantar a minha mulher? É coisa que se faça?” “Pára, Espanhol, pára. Não seja louco. Não vamos brigar, seu besta! Até porque você apanha, entendeu? Você apanha!” - prendia-me o braço, tinha uma força de que eu não tinha suspeitado, ainda. “Escuta aqui: que é que você sabe, que é que nós sabemos dela? Pensa que ela não me olha, que é uma santa? Pensa que eu não...preciso? Júlia, Júlia, aquilo está no fim, uma solteirona, um estrepe, e essas outras, só enfiar, mais nada... “ – começava a rir; pego pela hilaridade da erva, não entendia bem o que eu queria dizer, queria abraçar-me, conseguia, como que dançarino, anular minhas tentativas de tapas e socos, e, por fim, abraçou-me de fato, rindo, rindo. Paralisado, senti-lhe a força e as mãos que subiam para a minha nuca: “Me dá teu cheiro...O que é que você tem que ela te prefere, hem? O que é que você tem?” – tão perto, o que fazia? preparava-se para beijar-me? não: apertou-me o pescoço, e, abrindo-me o alto da camisa, localizou roxos, riu, riu: “Vocês dois, hem? Que patifes! Vou deixar minha marca aqui também, Espanhol...” – e cravou-me os dentes.





A postos todos os dias no caixa, Arlete já não tinha o sorriso, profissional que fosse, dos primeiros dias. Eu a olhava, achava-a cada vez mais triste, mais frágil, espantoso que ninguém a visse de fato, a criatura magoada que era – mas aí, era eu que tinha de sabê-la. O que, afinal, tinha sido a sua vida? Falara-me vagamente de um casamento que não acontecera, cinco dias antes rasgando todos os convites, a família a execrando, essa prima no interior um acordo, um exílio, mas a cidade, que queda sofrera! – na capital, tinha uma profissão, um nome, refinamentos; ali, perdida entre atrasados, pouco mais que uma garçonete. Retornaria para lá tão logo pudesse, tão logo se clareassem os meios e os impedimentos se atenuassem, mas talvez isso não fosse possível. Apalpava o ar, perplexa, como se tivesse se metido num emaranhado no qual um novo passo era sempre de afundamento, nunca de recuo. No que pensava quando se abstraía de tudo? Quais os muros? “Haja o que houver, vou pensar em você, sempre...” – deixou escapar.

Não dizia mais o nome de Brito, nenhuma menção à casa – para nós, agora, apenas os bancos das praças, as ruas de escuridão propícia, lágrimas e aflições que viraram hábitos; nada podia ser feito, eu sempre sem dinheiro, ainda dependendo do seu para cigarros, para uma cerveja; pensava, com persistente vagueza, em políticos e nomes influentes para uma providência de emprego – arrumaria para nós dois – mas a idéia de que ela era bela demais para despertar apenas consideração humana em vereadores e congêneres me esfriava. Brito, o que sabia dela era o que me vinha do bar: sem o Fusca, reaparecera com um Corcel aos pedaços, bebia ali, em horas nas quais eu não estava. No turno da noite, o atendimento que cabia a Arlete acabara ficando para um homem desconhecido. Ela pouco saía de casa, agora. Ensaiava um pedido de demissão, agoniava-se. Parecia incapaz de me contar fosse o que fosse do quanto sentia. “Não faz sentido, não faz sentido”, murmurava. Pedia que eu a procurasse menos, pois queria pensar. Em quê? “Vou ter que voltar, não vou ficar aqui. Não deu certo, sabe? Ruim demais. A única coisa boa é você, mas...”

Reencontrei Brito. Fizera algum bom negócio, tinha dinheiro para pagar uma conta antiga no bar: “Espanhol, sabe que eu ando até fazendo um mapa desta bosta de cidade? Em frente de um bar, passo, em frente de outro, não. Daí, sinto que é como se tudo fosse diminuindo, poucas ruas, nem andar muito a gente pode. Não tem coisa pior do que olhar de credor pra devedor atrasado e sem chance. Mas, de vez em quando...Olha! – mostrava-me as cédulas, coçava, satisfeito, a braguilha. – Que cigarro você quer fumar hoje? Pode escolher. Vamos beber alguma coisa mais cara? A gente pode ir naquele restaurante fino da Coronel Pedreira, pedir um prato de burguês...” Incomodava-me que ele bebesse tanto, e agora fizera turmas dedicadas ao pó, fora que, vez por outra, saía com uma outra turma, nos dias em que o sol aparecia depois de uma longa chuva, a procurar cogumelo de zebu nos pastos. Esvaía-se, o olho brilhava muito, mal tinha vontade de comer, a não ser quando baixavam as laricas, e entupia-se de doces, sorvetes, sanduíches. 

“Senti falta de você, compadre. Como vai a...? “ – arrependeu-se da pergunta esboçada, saltou para outra coisa, apontou um sujeito conhecido por quem sentia desprezo completo, rindo. Rir do que lhe fazia mal, era tudo que sabia. “E a Júlia?”, perguntei, aceitando o maço que me punha na mão, pago orgulhosa e ostensivamente, e ele balançou a cabeça: “Aquilo mesmo. Escuta: não quer ir uma noite dessas lá em casa? Uns caras deixaram uns discos lá. Tem novo do Genesis. Faço alguma coisa pra nós. Não tiver nada, arranco mandioca lá do quintal “ – riu. Tirou do bolso uns comprimidos. “Isto aqui vai muito bem com cerveja...” – engoliu.





O que houvera que eu tinha que conversar com a mulher desconhecida que aparecia lá fora, anunciada com desconfiança por minha mãe? Fui, quis abrir-lhe o portão; com um gesto, disse que não era preciso, que conversaria comigo sem entrar. Passando talvez dos quarenta, séria, olhos de noites sem sono, me olhou com cuidado: “Então, você é o Espanhol...” Dei um passo à frente, de imediato pressentindo que se tratava da prima. “Olha...bom, a Arlete...a Arlete morreu”. Agarrei-me às grades. “O corpo foi para São Paulo, o velório é lá...” – apanhou uma pequena caderneta da bolsa, uma caneta, e escreveu rápido : “Este é o endereço. Se pode ir...”

Nenhuma coragem para ir ver o corpo, nada de contar para minha mãe o que me prostrava, o que me fazia ficar horas, dias, no quarto, não querendo comer, respirar, ser, e ela, numa manhã em que conseguiu me arrastar para a cozinha, obrigou-me a ouvir: “Eu sabia que essa moça tinha alguma coisa de errado...Ela se matou. Tem mão tua nisso? Que é que vocês andaram fazendo? Todo mundo está falando, querido. Acorda, por favor...” Nada era mais decisivo que meu projeto de não acordar. Tampouco diria a ela que me doía não ter tido a coragem de viajar para vê-la, que minha culpa estava aí apenas, na pusilanimidade, na inépcia, na falta de dinheiro. “O que andam falando, afinal?” “Um monte de comprimidos, parece. Ninguém sabia nada daquelas duas, gente direita não devia ser. Era claro que ela não servia para você, querido...” “Cala a boca, mãe!” Voltar para o quarto, o quarto. E o tempo que me anulasse.

Mas, tinha que haver esse dia – um de alto azul, toda luz, toda minúcia de jardins, em que eu recomeçaria, em que o primeiro passo seria voltar ao bar. Muito olhado nas ruas, andando devagar, voltava. Novos donos para o estabelecimento, novas cores, que a proprietária de agora achara as anteriores muito feias, escuras, “de mau agouro”. A freguesia, no entanto, era a mesma. E havia a quem perguntar de Brito.

- Vai que pegou cana...

- Faz muito tempo não vejo.

- Diz-se que foi embora – Campinas, parece.

- Tava tentando vender a casa. Não sei se conseguiu.

O caso de Arlete diluíra-se, queriam falar-me disso, eram evidentes as perguntas mudas, mas a indiferença era depressa retomada, a cidade não sabia direito quem eram as primas, uma de passagem, apenas a minha namorada, tanta gente nova aparecendo, você já viu quantos bairros novos? perguntava-se com orgulho, alguém citava o Censo, “mentiu, diz que é só 30 mil, isto aqui já está indo pros 50, garanto, e lá em casa, recenseador não passou”, ufanismo com um prédio de apartamentos que se erguia junto à praça, com um semáforo recém-inaugurado. Minha ausência era de mais de um ano, Brito não aparecera em casa ou, se aparecera, o zelo e a astúcia de minha mãe silenciaram a visita. A quem recorrer, com quem conversar agora? Várias vezes olhei para o ponto de táxi, onde podia ser que Júlia apontasse com sua mala, sua espera. Nada. O fazendeiro entrou para pagar algo a uma nova moça no caixa, infinitamente abaixo da beleza de Arlete. Olhou-me com estranhamento, mas rápido se recobrou.

Em algum lugar do outro mundo ou de mim, Arlete tinha que estar. E me reaparecia em sonho, num jardim, respondendo à minha surpresa com um sorriso e um dar de ombros que tentavam dizer como era irrelevante a questão de ela estar morta ou viva. Entregava-me uma flor, retomávamos conversas que na verdade nunca tivéramos, que se alongavam até que algo me fizesse acordar e eu lamentasse, quase aos gritos, não conseguir sonhar mais, não conseguir revê-la, de novo conversar, dar e obter explicações obscuras. Na manhã seguinte, reencontrei Brito, depois de dar alguns passos incertos a uma forma muito familiar para ser inverossímil num banco da praça – ele sim, a cabeça enfiada nas mãos, todo enfiado em seus nadas, quieto. Reconheceu-me com um sorriso, mas dessa vez muito débil, com um ar de que não faria um comentário a algo que lhe aconteceria fatalmente: reencontrar-se comigo. Não mostrou surpresa. Parecia indizivelmente cansado.

O que andara fazendo dos dentes, que eram tão bons, que tratava sempre que dispunha de algum dinheiro? Cariados, sujos. Muito magro. Roupas velhas, sapatos acabados, certo mau-cheiro. “Oi, Espanhol...”, murmurou.

Arrastei-o para um bar, onde lhe paguei um maço de cigarros. Quis uma cachaça. De noite, estava de novo por ali. Segui-o até a casa, que ainda procurava vender, mas sem maior esforço. Onde estivera? “Por aí...” Nada do que dizia parecia claro, não se esforçava para concatenar idéias, como se qualquer esforço para fazer sentido aumentasse aquele cansaço que parecia partir de cada mínimo osso. “Nem sei como estou vivo”, murmurava.

Em Campinas, num cortiço, conseguira morar num cômodo, depois de um corredor onde se acumulavam botijões de gás. “Dancei” ali mesmo, uma vez. Apanhei muito, você já notou que prazer, que prazer meganha tem em dar pancada, quando acha que tem razão?” – tomava fôlego: “Um pontapé bem aqui – fez um círculo sobre a barriga - tão forte que me borrei, porque eu tinha alguma coisa no bolso. Um comprimido de Diazepina, calmantinho de farmácia, que eles disseram que era droga pesada, os imbecis. Tinha um delegado junto, paletó e gravata, óculos escuros. O tipo mais repulsivo que já vi. Deu em mim todos os socos que quis. E nem era eu que procuravam. Era outro cara...” Dias e dias moído. Vagar pela cidade, sem conhecer ninguém. Entrara numa livraria a esmo, e por que cismara de comprar o livro em prosa de um poeta, para me presentear? O presente vinha cheio de sujeiras, anotações, grifos a caneta vermelha. “Bondes passam disparando pelo meu quarto, apitando. Automóveis rodam sobre mim. Uma porta bate. Uma vidraça parte-se em algum lugar, tilintando, ouço os grandes cacos de vidro dando risadas, os menores dão risadinhas”.

Mais um cigarro. “Fui lá...” “Aonde?” “Apartamento dela, São Paulo. Sentiu meu cheiro, arregalou os olhos. Medo de mim, me mandou embora.” Um prato com mandioca cozida, que me estendeu. “Pensei que conseguia emprego por aí. Nada. Trinta e cinco anos, roupas sujas, quem vai te dar alguma coisa?...” Jogou os sapatos longe, exibiu-me os pés com feridas enormes que haviam cicatrizado de qualquer modo; tive que entender que fizera alguma vez uma caminhada longa, de dias e noites, supliciando-se sem rumo por entre serras, até chegar a uma cidade, cujo nome desconhecia, onde dormira na cadeia. Chorava, não tinha vergonha, “ponha um disco”, “Isso aqui? “came the night/a mist dissolved the trees?”... “Você se lembra, você sempre cantou bem...” Ouvimos a música, eu peguei um pouco da mandioca de seu prato. “Fui a um médico...” Eu não queria que ele se esforçasse por falar, alguma coisa lhe doía, como se a boca tivesse sido pisoteada. “Fígado inchado, ele disse.” Contei-lhe de Arlete, ouviu como que entendendo, mas longe, longe. Precisava de alguma coisa que não doesse. Se eu tivesse dinheiro. Arrumasse um carro. Tremia.

Fugia tranqüilo de casa, em outras noites, para estar lá. Quis que ele se vestisse melhor, ainda o figurino engendrado por Júlia, não, não, não, melhor jogar aquelas calças e camisas fora, lembravam dívidas, culpas, nojos, que eu desse um fim naquilo. E atenção só para os discos. E esperar que dormisse, o que não conseguia, mas eu não deixava o quarto, temia: a qualquer momento, num daqueles tremores, poderia levantar-se, procurar gilete, faca. Dizia sempre que alguém o perseguia, interessado no pescoço, no pescoço, um homem de capuz, “protege meu pescoço, Espanhol filho da puta!”. E se atirava sobre mim. E eu que me defendesse, confuso, daqueles dentes.

Andava pelo quintal, as risadas, “quisesse me afogar, a merda daquele corguinho” – apontava os fundos – “não dava nem pra isso. Ô cidade!...” Recuperava-se, já era capaz de sumiço – eu o sabia fora do perímetro, porque dera a vagar por estradas rurais, pelo mato, e era assombração imprevista de bares que ficavam abertos até muito tarde, onde chegava para irritar donos que estavam já para fechar. Eu parecia mais dono da casa do que ele. “Preciso te dar um avental, Espanhol...”, ria, na soleira da porta da cozinha, tomando um copo de seu chá.

Tarde da noite, cada um em seu quarto, nenhum sono nos dois. Sem forro, o desenho de ripas, vigas e telhas era lindo, uma forma geométrica pulsante, um ir e vir, desfazer-se e refazer-se, simetria de sonho. Sem sono, e o impossível, o liame entre um quarto e outro, qual? – o desejo de que fosse um quarto só, de que nada mais existisse, só um quarto, um.


Batem à porta da frente, um espera, insatisfeito em seu posto, que o outro tome a iniciativa de ir atender, nenhum se alui. Finalmente, confirmado que há alguém batendo com insistência, muito mais tarde, levantamo-nos juntos, cada um em seu quarto, e nos encontramos na sala, movimentos iguais, os braços estendidos lentamente, rumando ambos para abrir a porta. Andamos. Abrimos. Entreolhamo-nos. É Arlete outra vez.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

UMA DAS MIL NOITES: O CONTO DE HOJE















UMA DAS MIL NOITES



Teme a hora em que a porta do armazém do Esteves é baixada com estrépito, quando gente começa a se despedir das ruas, outras vozes vão chegando, os pios de pardais escasseiam até soar, no máximo, um último apelo de chupim, depois os carros que passam, as obsoletas lâmpadas em pratos nos postes da rua acendendo-se pálidas, a tosse de Mané Diogo, os rogos de Alzira, a criança que chora (e chorará pela eternidade afora, sem consolo possível, porque a mágoa é incurável e ninguém nos ouve), um que outro pedinte inesperado que nem chega a entrar na pensão, rechaçado por Dona Genoveva.

Teve a certeza de que não escaparia dali no dia mesmo em que deu o nome e os documentos para o italiano, que o mediu e não o considerou melhor ou pior que os hóspedes constantes ou circunstanciais, apontando-lhe o longo corredor que acaba num quintal, seu quarto dando para uma parreira que dá uvinhas mirradas, sempre verdes, para o pátio da máquina de lavar, das duas ou três bicicletas encostadas, do pequeno galinheiro. Quatro criaturas brancas e nenhum galo, dois poleiros, um cocho, seu limite.

Não haveria mais para onde fugir. Disse “viúvo” e se acomodou. Ficaria conhecido na cidade em pouco tempo, “o da pensão”, embora fosse também o do bar Gigante, do banco da Praça Monsenhor Padilha, em frente ao chafariz cercado por duas sereias com suas trompas, o solitário do sobe e desce do footing da rua principal, portador de certo caderninho. 



Porque anota, para ninguém, o que só ele pode ver, por condenado a testemunhar. A louca e seu inseparável leque, seus brincos e colares de fantasia, absolutamente sozinha, muda, engolindo algodão doce cor de rosa. Os velhos que rondam o bico da praça, nas proximidades da churrascaria, pagando para quem os queira ouvi-los falar com cuspe entre dentaduras, para as recrutas cada vez mais novas, uma de talvez quinze anos que não sorri e dá a mão ao sessentão que lhe compra sorvete de casquinha. 

Pior é olhar para o que está ali – as paredes, o guarda-roupa com um pozinho amarelo nos cantos, inútil para matar as copiosas e impenitentes baratas, a folhinha de Nossa Senhora Aparecida marcando a data da viagem para L. (se significa uma viagem o pegar um ônibus e enfrentar a estrada recém-asfaltada por meia hora), as coisas que alguns hóspedes deixaram escritas e que o italiano é sovina demais para apagar com nova mão de tinta, os lençóis amassados, a revistinha inevitável enfiada sob a porta (outros aceitaram, um dia ele terá que aceitar também) – e então a lembrança de Ana precisará ser buscada em algum canto da cabeça escura, no desespero espesso, sem mínima fresta, para que não pense, para que não sucumba, ela em seu vestido lilás, ao vento, ela procurando-o na festa com aquele olhar de perda que às vezes o assustava tanto, ela, ela... – nada pode, no entanto, contra o rádio de Mané Diogo, ligado em volume máximo no pregador evangélico que garante que Deus é maior.





A mulher que o olha há várias semanas é velha, mais tristemente velha porque tenta ocultá-lo com o batom, o rímel, os brincos, os vestidos de estampados vivos, e segue, com o perfume que julga inebriante, alguns passos à sua frente, rumo ao parque de diversões. Registra: ela viu interesse imprevisto na esquina e lá está, conversando com o ás da motocicleta, de uns dezessete anos se muito, sadio, obtuso e vital como tudo a que temos de servir, a que é necessário pagar. No footing, não falta quem o olhe, mas parece o escolhido das piores, das vencidas, das que já nada podem esperar do sobe e desce, e senta-se no grande banco em frente ao hotel Cacique para ver os rostos que fluem, inúmeros, inúteis, ninguém que possa ser um amigo, nada que possa estar livre da necessidade e do desencanto letais. Bem que o baixinho à entrada do hotel estica a cabeça, curioso pelo que possa estar anotando, e lhe pergunta se não quer ir consigo a certa casa de muita cerveja, ali te fazem uma “peta” por menos de vinte reais. A torre gótica da igrejinha do centro, o relógio que não funciona, as luzes, os bancos doados pelos eméritos já bem mortos, o cheiro de pipoca, o carrinho de quebra-queixo, os globos, os muitos besouros de outubro sobre os quais se pisa nas zonas de luz, o anúncio do circo, a passagem da bicha de sapatos vermelhos de salto na mão, que corre dos moleques que querem atirar nela um sapo morto e gritam e riem.
Choverá? O céu é de um azul cobalto claro, fundindo-se a uma zona escura de nuvens, e ele pensa na chuva que caía sobre o túmulo, na última visita. O belo rosto em preto e branco na fotografia tinha sido coberto pelas pichações, que lá também estavam chegando, “não há jeito de cuidar dessas coisas, professor, a moçada entra no meio da noite...”, e então a decisão de não levar mais flores, de nada mais fazer, de apenas voltar, sempre olhar, e esperar o quê? Ela gostava da chuva, corria com seus vasinhos a pôr flores e folhagens para a festa dos primeiros pingos, sorrindo. Um sorriso que acaba ali na boca de dentes postiços do vendedor de chifrinhos de amendoim torrado que tenta acordá-lo; é preciso pagar. Está em frente ao cine Rubi e entra sem saber por que. Suspiros, ofegos e gemidos da loira às voltas com o negro na tela. Cinco ou dez cabeças esparsas no escuro, e não há como não olhar para o alto. Os movimentos de alguns espectadores são inequívocos enquanto os dois se engalfinham na tela ao som das “Quatro estações”. “Não gostei desse. Sofisticado demais...”, alguém sai do escuro dizendo. Ele também sai e só então lê o título do cartaz: “As taras de Rosana”. Deus, onde estás? Engole mais amendoim.



Precisa, de vez em quando, sentar-se em qualquer lugar, porque se cansa com facilidade, e então se lembra da idade, do peso, dos exercícios que nunca fez nem fará, das recomendações inúteis de Ana. Inesperado tico-tico cantando triste em alguma das velhas sibipirunas da praça. O banco molhado. Latas de cerveja e refrigerante cobrem o passeio, alguém que bebeu demais está encharcado e esquecido num banco, o chapéu cobrindo a cara, e mais uma vez não há para onde ir, como nunca houve. 

Pudesse conversar com alguém... Mas, teria outro assunto que não Ana? Na última vez que se sentara no Gigante, pedindo cerveja, um turco muito magro se aproximara e fizera a sua caricatura. Pegara no traço rápido de esferográfica principalmente o hilariante de seu ar desgostoso. “Você é um triste”, dissera solene e untuoso, como um locutor de rádio. O que conversaram, ele mal se lembrava. Na verdade, só o homem falara. De sua família tirana que, por ele solteirão, já não o queria mais. De suas bebedeiras, de seu organismo que podia suportar não lembrava quantas cachaças uma atrás da outra e, veja só, os idiotas o achando alcoólatra. De dados, dominós, cartas. Por fim, quisera até lhe vender um terreno, a preço de ocasião. Não precisava pagar pelo desenho.

Enfrentar a cara do italiano no refeitório, vendo televisão até madrugada. Dona Genoveva, que jantava tarde, pegava grandes pedaços de carne da geladeira para o almoço do dia seguinte, ajudada por Alzira que segurava o facão, submissa. Passadas as crises de rogos, gritos, orações berradas no quarto que a italiana fechava por fora para isolá-la, cobrindo de xingamentos e resmungos o que lhe parecia menos insanidade que capricho, era apenas essa ajudante de cozinha que viera morar – definitivamente, ao que parecia – na pensão, sempre vestida de cores escuras, idade indefinida, fugindo dos olhares dos hóspedes, se embrenhando pelos quintais, de onde recolhia seus gatos. 

Noutro canto, cotovelos postos sob a mesa, os indicadores se encontrando sob o queixo, a boca discretamente (ele o supunha) pintada, os enormes olhos castanhos, trêmulo, interessado ora na televisão ora na passagem de algum hóspede novo, Agenor, que já voltara da rua, olhava para ele. Era cansativo não poder ser nem mesmo vagamente gentil com a figura, tamanha a sua facilidade para se apaixonar por qualquer espécime masculino que o tratasse com alguma consideração e daí convidá-lo para ir ao quarto. Mané Diogo deixara em cada uma das mesas um exemplar da revistinha editada por sua seita e também já voltava, paletó, gravata e cabelo duro de muito gel, dizendo um “boa noite” para todos com o insuportável ar de perdão universal (sem incluir Agenor) que adotara. 

Acabrunhava-o pensar que tinha que se recolher, era melhor ficar ali, vendo o que todos viam na televisão – concessiva, Dona Genoveva ficava junto a alguns hóspedes para ver programas que chegavam a ir até meia-noite. Ele custaria a pegar no sono, de qualquer modo. A gataria de Alzira percorria o quintal, dentro da madrugada sempre alguém a levantar-se para conversar em algum canto do corredor, um cicio aqui e ali, o que talvez fosse um pequeno gemido de Agenor, a descarga do banheiro coletivo, o canário do reino que, vendo luz acesa, julgava que era dia e se punha a dobrar indefinidamente.





Empurra a revista de mulher nua para fora do quarto, por sob a porta, e a questão é ir ficando quieto, tentando reduzir os ruídos exteriores à força de seu próprio silêncio. Pelo corredor, corrida de passos macios, uma risadinha abafada e, depois, a porta do banheiro batida com força, um palavrão. 

Em algum lugar, Ana flutua? Horror a essa idéia de sobrevivência do espírito, insensato que esses kardecistas (pois Dona Genoveva tinha idolatria por um exemplar muito manuseado e rasgado de “Nosso Lar”) não entendam que só o desaparecimento completo do eu pode provar alguma bondade divina. Ela na terra, no sono sem traço algum de identidade, abençoada, a chuva adensando a noite. Sente uma barata lhe subindo pela perna, ignora. Alzira colocara amaciante perfumado em excesso no lençol. O canário do reino de novo acredita na luz passageira. Uma coruja. A tosse de Mané Diogo.

Sabe que não irá embora. É olhar para a folhinha de Nossa Senhora Aparecida e ver o dia isolado por um círculo vermelho. Irá, sempre, no máximo até L., até o túmulo. Os italianos se desentenderam com alguém, lá na frente. Oh, Deus, três e dez, três e doze. Vira-se, talvez de bruços. Ouve as pancadinhas surdas, mas ansiosas, na porta. Não vai levantar-se para dizer não, a figura que recolha a revistinha e tente outro quarto, algum dos hóspedes cujo tesão frustrado autorize a supressão de repulsas, alguém que aceite enfiar num buraco voraz, no escuro. 

Lembra uma reza para dormir que a mãe lhe ensinara. Repete-a dentro de si, sem eco no seu próprio escuro, sem fé. A barata continua a lhe subir pela perna. A revistinha volta a ser enfiada sob a porta. Não olha. Cinco da manhã e alguém poderia, por pena, não acender de novo a luz do corredor para que o canário do reino, iludido, não tornasse a cantar

quinta-feira, 30 de julho de 2015

DO OUTRO LADO: QUEM É O VIZINHO?

















DO OUTRO LADO





“Você não pode dormir”, dizia-se, e engolia o café frio, mastigando pão velho, vez em quando olhando para a casa ao lado. Dali, as janelas de uma cozinha, de um quarto, o vitrô do banheiro talvez. “Muito bem, é questão de esperar...”, e era outro cigarro aceso, uma palpitação, uma como que vontade de ganir, de desabafar com sons sem sentido.

Esperar. Ia ao banheiro e voltava. Alarmes falsos da barriga. Detestava a sujeira da pia, a torneira que era impossível fechar por completo, a farmacinha gordurenta, ir e vir lépido de lagartixas, o silêncio, o vaso sem tampa. A todo momento, pensava no que não devia, suspirava pelo que era uma tolice arrematada, uma cisma, não podia haver ninguém do outro lado.

Ora, estava morando ali havia um ano e tanto, pagando contrariado um aluguel baixo (porque aquela ruína não merecia pagamento algum) e a outra casa, separada da sua por um terreno baldio exíguo, nunca tivera morador. No entanto, jurava que, semanas atrás, uma sombra se movera, muito rápida, por trás do vitrô. E então o portão fora aberto e alguém saíra correndo. Em vigília, com o cigarro, imobilizado pelo calor, pelo desânimo (para quê ir a qualquer lugar? a cidade morta, mais que morta, àquelas horas), vira de novo alguma coisa mover-se no quintal. Outro sinal por trás do vitrô na tarde seguinte. A mão na testa, depois alisando a cabeça. Alguém que se penteava. O gesto era definido, um homem. A seguir, nada. Teria que conversar com Dona Hermínia.





Era o que menos desejava: saber alguma coisa trivial como sim, havia alguém, um proprietário que às vezes retornava, um interessado no imóvel, um visitante conhecido da velha xereta onisciente. Olhar para a casa da perspectiva da rua, como agora olhava, era desolador – não apresentava mistério maior, medíocre, quase indistinta em seu branco mais que desbotado, o mato livre na frente, um portão de gradis aos pedaços, uma varanda que servia de abrigo para vira-latas na chuva. Mas a casa seguinte, ruidosa, viva, era de Dona Hermínia. Que já o vira, enquanto pendurava roupa no varal, e estava a postos, esperando. O quê? Como ela sabia que ele queria lhe falar? Cotovelos no muro, apertava os olhinhos atentos sob os óculos.

- Bom dia, moço. – O cumprimento parecia trazer um desafio: “Veja como sou capaz de conversar com o senhor, apesar de sua indiferença e seu orgulho todo.”

-... dia. – Olhava para os sapatos, não sabia como começar.

- O senhor trabalha no Eliseu Moreira, não?

- Sim. – Apoiou-se na estaca de uma arvorezinha, fugia ao olhar inquiridor, voraz.

- Não sei como consegue viver aí. Vez em quando, penso em ajudar o senhor, lavo roupa pra fora, se precisar... Já deviam ter derrubado essa casa. Como é que não despenca? Garanto que é daí que vêm todas as baratas daqui do quarteirão...

Pensou no assoalho afundado, nas tábuas soltas, ela tinha razão: a casa se enchia de rasteiras e voadoras, inútil brandir inseticidas, matá-las de outro jeito nem pensar, odiava o barulho do esmagamento. Mas, tinha sido assim – insistira para morar ali, poucos quarteirões do centro, do escritório, preço ao alcance, a proprietária uma velhinha indiferente, das que nunca saem de casa, à espera do fim. Não havia por que fazer a mínima reforma, apenas a localização tinha algum valor. Sim, mas era de outra coisa que queria falar. E como perguntar? A própria falta de assunto levou o olhar da vizinha para a direção desejada. Ela apontou:

- Essa outra aí ninguém quer.

- Por quê? – Teve que disfarçar um pouco o interesse que o tomava.

- Sabe Deus! Onze anos que moro aqui, nunca vi ninguém. Parece que é de um viúvo, da capital, mas não pude saber. Uma mulher sozinha morou aí, mas faz muito tempo, antes de eu vir pra cá, me contaram. E é boa ainda, não? Precisa de pouca reforma. - Ele foi se afastando, com um “até logo” que a mulher não ouviu, ocupada em descrever a cor com que pintaria a casa, o que faria no lugar da varanda, onde aumentaria, o que suprimiria. Voltou para dentro de casa sem que ela percebesse.





Era o gesto que o obcecava: lento, tranqüilo, a mão alisando a cabeça, um homem que estava à vontade numa casa onde não poderia, não seria lógico haver alguém. E os passos, e aqueles gradis do portão sendo empurrados com pressa no silêncio de uma madrugada sem grilos, depois o alarme do cachorro. O vulto correra, precipitara-se em direção ao centro, fora tragado por uma esquina. Por que o imaginara alto, ágil, capaz de correr muito bem? O cigarro apagado no parapeito, ele à janela examinando a casa, esperando um sinal mínimo, um ruído, uma sombra. Nada. O trecho do quarteirão era pouco iluminado, o poste de lâmpada de mercúrio muito mais adiante, o terreno baldio ali, pilhas de tijolos que envelheciam, que recebiam trepadeiras sinuosas, uma roda de bicicleta velha ao léu, algumas conversas na rua e o rádio de Dona Hermínia ligado no horário da Ave Maria. 

Isso não mudava nunca. Ela devia ter, sob o aparelho, um copo de água para ser benzida, como sua mãe fazia. Ficou triste. Decidiu fazer um café. Alguém na rua passava rindo, ouviu um pedaço obsceno de conversa. Irritou-se sem saber por que. Um palavrão como aquele teria feito sua mãe morrer de vergonha, a cara afundada nas mãos, desaparecendo rápido para a cozinha, para o quarto. 

Estava na casa de infância, de repente. Nada tinha de parecido a essa, mas identificou algo semelhante, familiaridade antiga, no quarto, na saleta, na cozinha com a mesa coberta por uma toalha de plástico estampada de frutas e legumes. A cristaleira ali, no assoalho que pendia, fora da mãe. Os bibelôs dela, gatinha e filhotes, lembranças de Aparecida do Norte, um leque, um rosário, pomba de porcelana com o biquinho quebrado. Do pai, o retrato sério, ar entre embaraçado e hostil, um bigode bélico.

Um passeio noturno, outro dos inúmeros inúteis, circulares. Não seria possível encontrar ninguém em especial, deixava-se envolver por conversas bestas num bar da praça, com bilhar e flipperama, dava cigarros, dividia cerveja com um ou outro. Incapaz de fazer parte de qualquer grupo. Ruim na sinuca. Bebida, tinha limites. Afonso da farmácia era quem mais lhe dava atenção. Aparecia tarde, começava a beber e era quase impossível pará-lo, porque era quando conseguia conversar, enfim, abrir-se, alegrar-se – perdia uma timidez que, quando sóbrio, o tornava quase inerme, bom apenas para as injeções, tão voltado para seu trabalho e tão lacônico que exasperava. 

Então, o assunto passava a ser mulher. Saindo dali, Afonso ia à casa de Fulana, rua tal, um bairro pobre, freguesa de injeções, o marido viajante. Com a cara de seriedade, eficiência e boa educação, não se adivinhava nele o lascivo que era, ou se fazia sempre de seduzido, de envolvido um tanto contra a sua vontade, elas as taradas, ele o objeto com uma ereção a contragosto. Nunca era possível conversar com muita coerência, a bebida impedia, mais gente chegando, outros amigos do farmacêutico, ruidosos, o que o fazia ficar à parte, espectador apenas. De frente para o bar, o bico da praça, para ali iria, acabaria se embrenhando pelas veredas concêntricas, tudo quieto, bancos a escolher, só o grave dos sapos na fonte, o vôo dos curiangos, um infeliz ou outro jogado nos caramanchões, nos bancos do coreto. Para quê ficar? Mais um cigarro, era voltar para casa, tomando outros quarteirões, mas os desvios sempre sem atrativos, desesperadamente iguais; anos e anos sonhando ir embora da cidade, mas ficara demais, ficara tanto que outro mundo, outros hábitos, eram impensáveis. 

Com quê um gato brincava mais adiante, recuando em pulinhos ágeis, avançando com patadinhas? Não: uma caranguejeira. Fez um contorno exagerado da cena, uma esquivança de tremores. Covarde para isso, para só ver, medroso dos cães inesperados na rua, dos tipos insondáveis que passavam sem boa-noite.

Na volta para seu quarteirão, lá a casa, nenhum movimento, o resedá, os escombros do terreno baldio, uma quietude que precisava ser rompida por um gesto, um acontecimento. Entrou batendo a porta com força. Colocou música, acendeu todas as luzes, ligou a televisão. Tudo que fez – o café, o banho, o trocar os discos, espalhar revistas e livros, arranjar a cristaleira, remover cadeiras – foi com a aplicação frenética de quem tivesse a maior das urgências, como quem tivesse uma vida de tempo todo ocupado, repleta de afazeres. Por fim, cansaço. Jogou-se na poltrona da saleta, a de couro preto, que nunca tinha saído da família. Ouviu. Batidas a princípio suaves, depois bem definidas, de gente grande, na janela. “Quem é?”, perguntou, meio sem voz, imediatamente pensando em ir buscar uma faca na cozinha, alguma coisa com que se armar porque, fora de dúvida, a coisa era para hoje. “Quem é?”, repetiu. Sem resposta. Um longo silêncio, o quê fazer, o quê pensar? Nada de abrir a janela. Perto dela, ao lado da escada de dois degraus, um alto pé de hibisco. Ouvia o vento nas folhas. Não abriria. 

Mas, não houve mais batidas. Não saía de frente da janela, recuado, a faca na mão, preparado, mas aos poucos sua rigidez foi-lhe parecendo estúpida - contra quê reagia? – e relaxou, sentou-se. “Estão brincando comigo. Desgraçados!”, suspirou, mordeu as costas da mão, não soltou mais os dentes, permaneceu ali. Nem cogitar de dormir.







Era preciso prestar atenção. Depois do almoço, ao sair para uma voltinha no quintal, encostou-se ao muro. Olhou para o terreno baldio, de onde vinha um cheiro de carniça. Viu o cachorro morto. Conhecia-o. Um perdigueiro magro, sem dono, que de vez em quando o seguia por um bom trecho quando voltava à noite, choramingando quando ele fechava o portão no último passo. Pensou em enterrá-lo, seu vago amigo. Não. Fazer nada. O olhar subia para a casa, para o vitrô. Nenhum sinal. Sentia uma espécie de ódio – que controle ter, qual conhecimento era possível com alguém ou algo que brincava de não ser, não definir-se, com tamanha capacidade de atormentar? 

O gesto no vitrô fora nítido. Existia sim. Era um sujeito odioso. Já o tinha inteiro na cabeça: alto, bem vestido, forte, enxuto, com certeza bom de briga, bom de mulher, talhado para a vida viril, dominador convicto, um tipo certo. Tinha que odiar alguém assim, dotado para a humilhação, para a admiração e o desespero dos fracos. “Comigo não. Você não vai me aterrorizar”, dizia. Pensava em emboscá-lo – como? Primeiro, era preciso que definisse, que se mostrasse. Prestar atenção, atenção, atenção.

Então, o movimento do escritório, para o qual mal erguia a cabeça da máquina de escrever, interessou-o. No balcão, o quarentão de bigode, bem vestido, firme e indiferente. Um fazendeiro. Um tipo que conversava com o Eliseu, que se punha de queixo tão erguido quanto o do chefe. Por que os olhares o atravessavam, não o viam? Na rua, o sujeito que ia à sua frente, de pasta sob o braço, apressado. Virava-se, e a cara nada tinha de misterioso, de incriminador. Viu, na mesa do restaurante, um desconhecido tranqüilo que enfiava a mão pela testa, devagar, alisando as entradas, indo até o fim do cabelo com aquele afago. Parecia muito gentil, o hipócrita. Retalhava um filé com brócolis. Na esquina do restaurante, dois ou três ociosos, com caras vagamente hostis e gozadoras, e nada. Não sabia quem procurava. Tinha um rancor difuso contra toda a raça masculina pelas ruas. Não conseguia travar uma conversinha, por menor e inócua que fosse, sem uma ironia, sem querer inquirir, acusar, culpar. Foi à farmácia do Afonso e ele veio atendê-lo, saindo dos fundos, de onde vinha seguido por uma mulher gorda a puxar uma criança que tossia tristemente. “Qual é a bronca?”. “Pode me vender um calmante, fiado?”. “Você parece que viu o Diabo...” “Meu problema é não conseguir vê-lo...”



Preparou o sanduíche devagar, vez em quando a faca suspensa, procurando ouvir o que houvesse lá fora, e comeu à janela, olhar fixo na mesa, não podia abandonar a guarda. Irritou-se quando moleques começaram a brincar no terreno baldio, entre ele e o objeto de seu interesse. Profanação. Expulsou-os com palavrões, um deles ameaçou-o com um pedaço de tijolo, grunhindo. E começava a anoitecer. O céu de um fim de dia de chuva, laranjas e rosas, um indefinível roxo, e as sombras lentas, o denso das mangueiras, barulheira de “passos pretos” e chupins, a Ave Maria no rádio de Dona Hermínia. 

Talvez olhar tanto, tão fixo, o tivesse feito passar por um cochilo. Porque houve um momento em que abriu os olhos, sobressaltado, e a sombra passou lá nos fundos, com certeza contornando a casa pelo outro lado, o que não podia ver. Agora. Foi para a rua, para ter a perspectiva certa, a amplidão sob controle. Não viu. Agastado, decidiu entrar na casa. Por que não? Era noite já, quem o olharia? Empurrou o portão, um gradil podre, e entrou na varanda. Sujeiras de cachorro, um resto de pneu, papéis de bala, uma lata de cerveja, uma espiral de arame enferrujado. “Fique calmo.” O escuro cada vez maior, mais protetor, mais insidioso também. “Mato você, se aparecer. Aparece, seu bosta!”- tremia, cerrava os dentes. Contornou a casa pelo lado em que supunha que ele não estaria, foi para os fundos, onde encontrou a goiabeira, a tiririca alta, pedras, lixo, nada. No entanto, ouviu os passos. E ouviu-os como que correndo: pulara o muro, estava na rua, fugia. Correu também.

De onde lhe vinha essa coragem? Porque – incrível – era agora um perseguidor. Lá adiante, os passos largos, a sombra contornava uma esquina, e era preciso não perdê-la de vista. Agora, uma rua central, não de todo deserta, mas o outro se esgueirava entre gente na calçada, um grupinho ruidoso em frente a uma lanchonete, sem desaparecer. Outro era o ritmo, ambos apenas andavam, vigiavam-se, mediam-se, ele via a cabeça que se virava para certificar-se de que continuava havendo perseguição. “Vou te pegar, miserável”, inchava: não era também capaz de causar medo? Mais alguns quarteirões, uma descida, e então uma rua comprida em que as casas começavam a escassear, passagem por depósitos de material de construção, uma madeireira, largos intervalos de terrenos a ocupar, mais sinuosidades, um desaparecer e reaparecer lá na frente, a sombra bailarina, ele o sabujo determinado, implacável. Parou, precisou parar, para avaliar o terreno. Estava perto do brejo. Não havia lua. A cidade ficara longe e era possível ver muito pouco. Um paredão de eucaliptos. Tão bom o cheiro, misturado a alguma coisa que queimava na noite. Lá, entre as frestas dos troncos, ele não acabara de passar? Cães ladravam – eram dezenas – em chácaras das proximidades.

Começava a sentir-se muito cansado, a andar com dor. Estava perplexo por ter chegado tão longe, e tudo isso não fazia sentido, não havia homem algum, não via nada, estava exposto, para onde olhar, de que lado poderia ser atacado? O ermo. Lá embaixo a luz da cidade criava uma zona difusa de claridade baça no limiar do céu negro. Mugidos. Uma ave branca abriu as asas e pousou além, num tronco seco, piando áspero. Para onde ir? Resolveu esperar. Imóvel, só muito mais tarde sentiu que um movimento no escuro era feito em sua direção.

- Você está aí? Você está aí? – gritou, e apalpou o bolso, na inútil esperança de haver trazido o canivete. Pedras, abaixou-se para pegar uma. A sombra se movia em absoluto silêncio, o homem alto. Passou a mão devagar, alisando o cabelo. Um sinal de nervosismo, pensou, um tique, é um louco, um obcecado. “Fala comigo, porra! Que você quer de mim, que você fazia lá na casa?” Nenhum som. Estava ali, não avançava, olhava-o - um olhar vinha daquilo, como era? “Fala, desgraçado! Que foi que eu te fiz?”

Imperceptivelmente, era ele quem andava, quem ameaçava, quem iria tocá-lo, quem estava muito perto. A sombra não se mexia. Nervoso, lembrou-se: o isqueiro. No bolso da camisa. 

Aproximou-se. Agora, sentia a respiração do outro e poderia, se quisesse, dar-lhe um pontapé na braguilha, desmontá-lo. “Você está com medo, hem? Confessa: você está com medo. Porque eu vou saber”, disse, trêmulo, acendendo o isqueiro e queimando os dedos para sustentar a chama alta. Então, o rosto do homem.

E veio o grito. E não teve mais fim